capítulo I

QUE DANÇAS VIERAM DANÇAR NO BRASIL...

Em 1908, o ballet era uma arte de idade veneranda e de um passado nobre, mas esquecido (...). Num país novo e democrático como o Brasil, não havia lugar para essa flor encantadora, mas já murcha de tempos idos (Murilo Almeida dos Reis, 1959:4).

Quando pensamos em dança e público, muitos fatores se apresentam para explicar por que a comunicação entre ambos foi se esgarçando ao longo do tempo. Alguns aspectos reincidentes são: carência de políticas públicas, pouco acesso à informação sobre dança por parte do grande público, espaço insuficiente disponibilizado à dança pela mídia e, também, o modo como essa relação vem sendo construída ao longo da história.

Neste primeiro capítulo, apontamos, então, algumas fissuras na construção da relação dança/público, desde a chegada do balé ao Brasil. É importante deixar claro que não vamos seguir a história passo a passo, mas sim trazer exemplos que sintetizam o tema aqui proposto, com ênfase no problema da comunicação.

1.1 A BUSCA DE UMA SINGULARIDADE PARA A DANÇA NACIONAL

O balé clássico chegou ao Brasil no início do século XX, vindo de longe – da Rússia – com as companhias de Diaghilev e Ana Pavlova. As turnês promovidas representaram o início da implantação da técnica do balé no país, não só pela oportunidade de o público assistir às apresentações, como também porque muitos de seus bailarinos passaram a morar e trabalhar em terras brasileiras, ministrando aulas e coreografando.

Assim, embora já em 1916, antes da chegada das companhias russas e onze anos antes de ser formada a primeira escola oficial de dança do Brasil, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro já tivesse recebido em seu palco nomes como Isadora Duncan, até então, a referência majoritária de dança para o público brasileiro ainda vinha do balé clássico importado da Europa, principalmente França, Itália e Rússia.

Em 1927, Maria Olenewa, bailarina e coreógrafa que dançava na companhia de Diaghelev, instalada primeiramente no Rio de Janeiro e, mais tarde, em São Paulo, fundou então no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a primeira Escola Oficial de Dança do país. Começávamos a desenhar o que seria a idéia de formação de um balé nacional.

Como justificativa para a criação dessa escola, Maria Olenewa afirmou às autoridades brasileiras que um corpo de baile formado por bailarinos nacionais resultaria em menores despesas nas montagens das óperas. Mas, muito mais do que isso, essa iniciativa permitiu que uma continuidade de formação de dança pudesse vingar em solos brasileiros, resultando, mais tarde, em companhias profissionais de dança, professores, coreógrafos e também em um público que se tornava cada vez mais habituado a ver balés.

Interessante observar que, por se tratar de uma experiência nova, principalmente para o público que freqüentava o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sede da escola, Maria Olenewa, na primeira parte de seus espetáculos, sempre apresentava o balé de forma bastante didática, com o objetivo de trazer àquele público um pouco mais de informação.

Esse procedimento, de fato, foi e ainda é bastante explorado por diversos coreógrafos, com o intuito de despertar maior interesse por parte do público. No entanto, apesar de parecer uma estratégia providencial, tais explicações guardavam uma ambivalência, levando a inferir que a dança, por si só, não estava cumprindo sua função de comunicar, por isso a necessidade de artefatos para explicá-la.

Um exemplo interessante é o da bailarina e pesquisadora americana de danças étnicas, La Meri (1899-?), que também esteve no Brasil em 1939. Essa artista viajava o mundo fazendo espetáculos-palestras sobre o seu trabalho.

Trata-se, portanto, de uma estratégia de formação de público; porém, cabe questionar: em que medida ela seria eficiente para que esse público, que pouco conhecia de dança, passasse a reconhecê-la como linguagem artística?

Em 1939, aconteceu então a primeira grande temporada da Companhia Oficial de Bailados do Brasil, criada em 1936 por Maria Olenewa. Nessa temporada, ficou evidente que tanto o público como a crítica ainda tendiam a exaltar o que era estrangeiro. A expectativa era de que o espetáculo seguisse os passos dos balés de Diaghilev, uma vez que sua diretora e coreógrafa era uma ex-integrante dessa companhia russa.

Afinal, apesar de, desde sua chegada, Maria Olenewa buscar a formação de um balé nacional, a dança em seu corpo havia sido construída de acordo com os parâmetros russos; logo, era inevitável a contaminação por esses parâmetros de construção da cena, da técnica e do entendimento de corpo.

Sendo assim, no sentido de buscar uma relação entre dança e público brasileiro, e vice-versa, outra estratégia utilizada nessa ocasião pelos coreógrafos e diretores era a criação de espetáculos que abordassem temas relevantes para a sociedade da época - temas regionais, ou sobre negros, sertanejos e ainda sobre a figura dos índios, já em um momento de transição.

Parece então que a dança não era o mais importante, configurando-se, apenas, como um suporte para o engajamento em outros assuntos pertinentes no momento. Fica a questão: buscava-se a formação de público para a dança, ou a dança estava sendo usada para outros objetivos?

1.1.1 A mímica colonial no Brasil nacional

De fato, em especial no período do Estado Novo (1937-1945) – o governo nacionalista defendia o slogan: “O melhor do Brasil é o brasileiro” - a dança era bastante utilizada como veículo de propaganda do governo, através das temáticas de seus espetáculos, como por exemplo, a importância do povo e dos ritmos nacionais.

Porém, percebemos que, mesmo que os assuntos fossem “nacionais”, o corpo que os discutia era “nacional-estrangeiro”, uma vez que a técnica utilizada ainda era a do balé clássico importada da Europa. E o público ainda precisava daquela “configuração técnica” estrangeira, no corpo, para compreender o espetáculo como sendo de dança.

Na esteira da discussão sobre identidade está uma das questões mais polêmicas e controversas enfrentadas pela dança: o sentido de nacionalidade. Como de praxe, para todas as antigas colônias, mobilizadas pelo ensejo de discutir e afirmar sua identidade cultural, a idéia de uma dança nacional e a busca de seus parâmetros diferenciadores comparecem como preocupação coletiva, ao longo de todos os momentos da história brasileira da dança, seja na produção intelectual ou na prática profissional dos artistas e professores de dança, sob diferentes matizes (Britto, 2002:72, grito da autora).

Esse processo de se reconhecer a partir do outro pode ser definido como mímese, o que significa o desejo de um outro reformado, reconhecível pelo sujeito que imita, ou seja, segundo Bhabha (2003:130), “como sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente”.

Ainda na perspectiva do autor, o discurso da mímica se constroe em cima de uma ambivalência; para ser eficaz, a mímica necessita produzir seu deslizamento, sua diferença e seu excesso.

De fato, Greiner (2007:16) ressalta que o processo da imitação carrega, devido a sua própria natureza, a impossibilidade da cópia fiel. O risco é o esvaziamento do processo, a despolitização da ação. Isso já aconteceu no Brasil inúmeras vezes, quando emprestamos modelos culturais estrangeiros “como decalque e não como mapa”.

Em nossa história, esse processo se repete desde a chegada dos primeiros colonizadores, que trouxeram consigo seus costumes, visão e cultura. Como colonizados, passamos a enxergar o mundo a partir desses parâmetros importados. Esse olhar através do outro nos fez perceber a nós mesmos de outra maneira, a partir desse filtro colonizador.

É desse espaço entre a mímica e o arremedo, onde a missão reformadora e civilizatória é ameaçada pelo olhar deslocador de seu duplo disciplinar, que vêm meus exemplos de imitação colonial. O que todos têm em comum é um processo discursivo pelo qual o excesso ou deslizamento produzido pela ambivalência da mímica (quase o mesmo, mas não exatamente) não apenas “rompe” o discurso, mas se transforma em uma incerteza que fixa o sujeito colonial como uma presença “parcial”. Por “parcial” entendo tanto “incompleto” como “virtual”. É como se a própria emergência do “colonial” dependesse para sua representação de alguma limitação ou proibição estratégica dentro do próprio discurso autorizado (Bhabha, 2003:131, grifo do autor).

Com a crescente onda nacionalista da Era Vargas (1930-1945), o povo brasileiro é introduzido nesse contexto - não somos mais reprodução européia ou americana (novo personagem na cena política).

Marilena Chauí (apud Pereira, 2002) coloca que o mestiço acabou virando um bode expiatório do atraso brasileiro, uma vez que havia um descompasso grande entre negros, brancos e índios, causando uma pobreza cultural, atraso mental e falta de unidade de nossas tradições e artes.

E só a partir de 1930 que esta posição começa a mudar - ser mestiço deixa de ser vergonha e vira orgulho nacional, sinônimo de brasilidade. O samba, por exemplo, apenas nessa época deixa de ser marginal. Segundo Pereira (2002: 128), em 1930, dois grandes núcleos aglutinavam conteúdos particulares de nacionalidade: o nacional popular e o da mestiçagem, não tanto biológica e sim muito mais cultural. Enfim, era a cor que passava a associar uma imagem estética a uma apreciação moral e também cultural.

Essa atitude nacionalista também reverberou na dança, fazendo crescer a busca por uma dança mais nacional, mais brasileira. Essa dança encontra sua representante maior: uma antiga aluna de Maria Olenewa, a bailarina Eros Volúsia.

1.1.2 Eros Volúsia: criadora do bailado nacional

Eros Volúsia nasceu em 1917 e fez balé clássico na Escola de Bailados do Teatro Municipal do Rio de Janeiro por apenas quatro anos, pois, apesar de acreditarem que seria uma grande bailarina clássica, Eros queria mais. Para ela, a dança precisava ir além. O academicismo que o balé carregava era um fator de repressão, ao qual seu temperamento e a adoração pelos ritmos brasileiros e danças expressivas não podiam se limitar.

Segundo a própria Eros Volúsia,

seria um absurdo cultivar uma arte de expressão internacional, enquanto toda uma raça esperava de meu corpo a realização de sua alma. Minha tendência pelos ritmos brasileiros manifestou-se logo que iniciei meus primeiros passos de dança” (apud Pereira, 2002: 144).

A primeira apresentação de Eros Volúsia foi em 1929, para o Presidente Washington Luis, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Em 1937, Eros fez uma nova apresentação nesse mesmo teatro, intitulada Bailados Brasileiros, em que trabalhou apenas com músicas e danças nacionais. Assim como outras bailarinas e coreógrafas, como Maria Olenewa, por exemplo, Eros Volúsia usava de um didatismo para colocar o público mais a par do que seria aquela dança, pois os ritmos que apresentava eram ainda bastante desconhecidos. Aqui se apresenta, mais uma vez, o procedimento de “explicação didática” da dança.

No caso de Eros Volúsia, com o intuito de tornar sua dança mais acessível para a elite carioca, ela também transformava em erudito o que estava reservado apenas para o popular; trazendo as danças dos terreiros, das rodas para o palco.

Estilizando o popular em erudito, Eros foi então pioneira em tornar artísticas essas danças populares, como o maxixe, por exemplo. Com isso, sua arte era consumida pelo público dos cassinos e do Teatro Municipal, ou seja, pelas elites que se interessavam pelo exótico.

Para (Wisnik apud Pereira, 2002), “Seu Corpo queria ser a tensão entre e salão e o terreiro, queria ser o que se mostra e o que oculta, num processo de interpenetração de culturas”.

Eros Volúsia representava o popular que caracterizava toda uma classe, uma massa urbana, que ganhava força em seu corpo, e através dele cavava entrada no Teatro Municipal.

...em num período muito curto, na passagem dos anos 20 para os anos 30, pula-se de uma separação, de uma marginalização quase absoluta do elemento negro, para absorção pelo poder do discurso da mestiçagem. O que explica a velocidade desta mudança? Onde podemos identificar os passos que encaminham esta mudança? No caso de Eros, qual o tipo de aceitação que tinha para estar ensinando as técnicas que estava desenvolvendo? Que tipo de público estava atingindo nos anos 30?(...) (Lopes apud Pereira, 2002:170).

1.2 COMO O CONTEXTO E O CORPO CO-EVOLUEM?

Na visão de Pereira (2002), temos até 1930 uma estrada bifurcada: “de um lado o balé estilizado e impregnado de estigmas europeus e do outro o teatro de revista[1] que coloca em discussão o popular e o erudito, que permite a mistura, a experimentação”.

De fato, é nos teatros de revista que as manifestações artísticas (música, teatro e dança) encontram seu ambiente propício para verdadeiras experimentações cênicas, musicais e coreográficas.

Vários coreógrafos buscavam nos teatros de revista inspiração para seus trabalhos, que seriam executados no palco do Teatro Municipal, para um público que não aceitaria ir a um teatro de revista ver tais apresentações. Porém, como o contexto era outro, os espetáculos passavam a ter outra conotação. A fronteira desse processo de contaminação já estava transbordada, mas, para um público segmentado e preconceituoso, cada manifestação artística deveria se restringir a seu devido lugar, e com sua escala de valor.

Esse mecanismo de tirar uma coreografia de seu local de origem e colocar em outro - por exemplo, estilizar, transfigurar - se assemelha ao processo de nivelamento estético, que consiste em elevar uma manifestação inferior ao plano da “arte culta”, ou deslocar algum aspecto da arte popular para a arte erudita. No caso especifico de Eros Volúsia, como a bailarina tinha pouca técnica clássica, esse nivelamento não era tão evidente, pois as fronteiras entre nivelamento e desnivelamento ficavam mais borradas.

No exemplo acima, fica claro que o conceito de contexto é entendido de forma estática, como se a simples mudança de ambiente mudasse a informação que é transmitida; neste sentido, o ambiente também é estático. Segundo Sebeok (apud Greiner, 2005:129), porém, o contexto em que tudo acontece é muito importante e nunca é passivo. Logo, o ambiente no qual a mensagem é emitida, transmitida, e sujeita a influências, nunca é estático, mas uma espécie de contexto sensitivo.

Já há alguns anos o “onde” deixou de ser apenas o lugar em que o artista se apresenta, transformando-se em um parceiro ativo dos produtos cênicos. Ao invés de lugar, o onde se tornou uma espécie de ambiente contextual (Greiner 2005:130).

A idéia de contexto[2] pode variar muito. Na visão de Sebeok (apud Greiner, 2005), contexto é o reconhecimento que um organismo faz das condições e maneiras de utilizar efetivamente as mensagens. Portanto, contexto inclui sistemas cognitivos, a memória das mensagens, mensagens paralelas e a antecipação de mensagens futuras.

O corpo e o ambiente estabelecem relações que acontecem a partir de processos co-evolutivos e, segundo Greiner (2005), produzem uma rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais. Corpo e ambiente estão envolvidos em fluxos constantes de informação, mas existe uma taxa de preservação que garante a unidade e a sobrevivência dos organismos. Esse modo de compreender corpo e ambiente determina o fim da idéia de que existiria um objeto esperando um observador. De acordo com a teoria do Corpomidia, de fato, não há espaço para o procedimento de um corpo recipiente, que só recebe as informações do mundo, mas sim de um corpo que troca com o ambiente.

A mídia a qual o corpomidia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processos de contaminação (Greiner, 2005:131).

O contato com novas informações insemina o contexto de tal maneira que modifica o ambiente, e este, já modificado, passa a produzir corpos modificados para habitá-lo. Esses novos habitantes, então, passam a produzir um contexto mais complexo, que por sua vez vai modificar outros corpos, e assim por diante.

Trata-se de um processo que, infelizmente, ainda acontece pouco nos ambientes em que a dança contemporânea está inserida hoje. A ausência de continuidade da maioria dos programas para a área faz com que esse mecanismo não aconteça; logo, parece fato a inviabilização das ações da dança em certos ambientes, sendo este um ponto determinante para sustentar a dificuldade que a dança contemporânea encontra em se comunicar com seu público e em certos ambientes.

Voltando então ao teatro de revista, no Brasil, havia um estágio a ser percorrido entre essa manifestação artística, a ópera e o balé, devido ao preconceito de classe. A relação entre as instâncias do popular e do erudito, observável neste contexto do teatro de revista, ganha particularidades bem interessantes quando o assunto é dança. Se esse tipo de configuração cênica era o lugar onde se dava o livre trânsito das questões sobre o corpo nacional, através de seus tipos característicos, de suas músicas e suas danças, obviamente havia ali mais do que uma convivência - havia uma interpenetração de informações. E no corpo que dança, mais do que isso, havia contaminações.

Mesmo o maxixe, e depois o samba deveriam se dissolver num corpo treinado pelo balé, ou vice-versa. Se, a partir disso, a estilização das danças nacionais acaba sendo, por um lado, um único caminho possível, quando executada por um bailarino, por outro, foi com o ensino do balé em terras brasileiras que se pôde arranjar melhor cenicamente as revistas (Pereira, 2002:144).

E havia também os cassinos. Muitos bailarinos da companhia oficial, além de Eros Volúsia, dançavam nos cassinos da cidade carioca, para complementar seus salários, sendo o público o mesmo que freqüentava o Teatro Municipal. Também nesse caso a experimentação era a mesma, o que mudava era o contexto.

1.3 A AÇÃO DA MÍDIA E DOS CRÍTICOS NA DANÇA

A crítica de dança começa a ser delineada principalmente no Rio de Janeiro, início do século XX, à época da fundação da primeira Escola de Bailados do Brasil (1927), seguida pela implantação da Companhia Oficial de Bailados (1936). Para que essas ações tivessem sucesso, o papel da crítica foi fundamental, para se entender como a linguagem cênica da dança poderia ser produzida aqui em solo nacional e ganhar formas brasileiras.

Dentro desse contexto, de avanço da dança, cresceu o número de críticos de jornais que cobriam os eventos de dança na cidade. Estes iam se formando à medida que as companhias iam se aperfeiçoando, e com isso iam cobrando delas uma produção mais apurada e sofisticada.

Porém, havia muitos desconfortos por parte dos críticos, que tinham dificuldade em falar de uma dança que não fosse o balé clássico; ou seja, os críticos estavam tão condicionados quanto o público. Eles conseguiam reconhecer uma dança brasileira, mas tinham uma grande dificuldade de falar sobre, exclusivamente por falta de compreensão e conhecimento. Assim, dificilmente esses críticos aceitavam, por exemplo, que em um mesmo espetáculo uma bailarina dançasse dois estilos completamente diferentes.

A crítica destina-se ao artista, ao público, ao pesquisador, à história. Ela cumpre uma parte importante nesse processo de formação de platéia, porque pode, sem preconceito e com didatismo, ajudar o espectador a ler o que ele está vendo, sem, contudo, criar um único modelo de leitura. Ainda representa uma fonte de grande valor para os pesquisadores, pois retrata uma época, um contexto. Os críticos de dança começaram a perceber então que, para se criar um bailado brasileiro, diferentemente do balé clássico, eram necessários tempo e pesquisa (Pereira, 2004).

As abordagens teóricas sobre a dança costumam valer-se de metáforas e analogias como recursos explicativos. Busca-se, deste modo, suprir com imagens de equivalência uma insuficiência de repertório conceitual, originária da histórica condenação da Dança ao reino da subjetividade – sob a alegação de que qualquer intelectualização sobre o modo operativo representa uma ameaça às suas mais nobres propriedades: aquelas que garantem o envolvimento emocional do público (Britto, 2002:80).

Dentro desse contexto, o crítico Jaques Corseuil (1913-2000), um dos primeiros realmente especializados no assunto, deve ser mencionado como peça fundamental nessa construção de uma história da dança brasileira e de seu público.

Mas o grande desafio nessa época, não apenas para a dança que precisava se formar em uma nova cultura, mas também para o Brasil como país, era entender nossa própria cultura e nosso corpo plural. Quando os dois problemas se tocam, o do corpo plural se amplifica, justamente pelo que não está implementado, pelo lado da dança, e pelo que ainda não está aceito e entendido, pelo lado da cultura brasileira.

A crítica de dança brasileira, depois de quase um século de existência, ainda tem um longo caminho a ser percorrido, pois tem papel fundamental na construção da dança que fazemos aqui no Brasil. Seu desafio é continuar a apontar para diversos alvos, são eles: o público, o artista, a obra de arte. Segundo Pereira (Jornal do Brasil, 16/03/2004), é importante que ela continue a auxiliar na quebra de pré-conceitos a cerca do que seja fazer uma dança brasileira, um corpo brasileiro[3], sem que continue impregnada dos clichês do significado do adjetivo “brasileira” para dança, ao mesmo tempo em que coloca em crise, em um processo contínuo e profícuo, o que se produz e o que se pensa em dança no país.

1.4 A CRIAÇÃO DE UM CAMPO DE CONHECIMENTO PARA A DANÇA

Mesmo diante de várias adversidades, a dança cresceu, principalmente nos últimos 12 anos. Surgiram mais eventos como: Feminino e Masculino na Dança (ambos este ano completam 17 anos de existência); Semanas de Dança e Solos, Duos e Trios, do Centro Cultural São Paulo; Primavera na Dança (desde 2005) do Teatro Fábrica; Dentro e Fora do Eixo ou Fora do Eixo ou Deslocamentos (desde 2005), do SESC Ipiranga; Dança em Pauta (desde 2002), do Centro Cultural Banco do Brasil; Panorama SESI de Dança (desde 2000), do SESI (Serviço Social das Industrias); Mostra Crisantempo (desde 2006), da Sala Crisantempo;Temporada de Dança do Teatro Alfa (desde 1998); Espaço Aberto da Cia 2, do Balé da Cidade de São Paulo (desde 2006); Teorema (desde 2004), idealizado por Adriana Grechi e com curadoria de Fabiana Britto (até 2007 no Estúdio Move e a partir de 2008 no Estúdio Nave); A Casa do Outro (desde 2005), do Espaço Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira; e, ainda, o Viga Espaço Cênico, que programa espetáculos de dança com uma certa regularidade, além do Caleidos Arte e Ensino, que programa espetáculos e promove residências artísticas.

Há também mais festivais[4], como o Festival de Dança de Araraquara (desde 2000); Bienal de Dança do SESC Santos (desde 1997); Festival Nacional Curta Dança – Sorocaba (desde 1996); Pública Dança – Votorantim (desde 1994); Mostra de dança do espaço Pés no Chão – Ilhabela.

Surgiram, ainda, alguns prêmios de instituições privadas, como o Prêmio Cultura Inglesa da Associação Cultural Inglesa de São Paulo (desde 1996); Rumos Dança, do Itaú Cultura (desde 2000).

Mais cursos de graduação, como a Unicamp – Artes do Corpo; PUC-SP – Comunicação das Artes do Corpo; Anhembi Morumbi – Curso de Dança; Faculdade Paulista de Arte – Curso de Dança, além do curso de Formação em Dança Contemporânea da Escola Livre de Dança de Santo André. E também de pós-graduação: Mestrado e Doutorado – Comunicação e Semiótica – PUC-SP, Mestrado e Doutorado – UNICAMP e UNESP.

Mais coletivos (no âmbito nacional): Couve-flor – Curitiba, o Coletivo T1 – São Paulo, o Quadra Pessoas e Idéias – Votorantim, o Colaboratório - Ceará e o Núcleo de Criação do Dirceu – Piauí. Mais grupos abriram seus próprios espaços: Lugar – João Andreazzi, Estúdio Nova Dança – Cia 4, Cia Oito e Nada Dança (o Estúdio, no início de 2007 encerrou suas atividades).

Outro ponto muito importante dentro deste panorama foi o considerável crescimento no número de publicações, tanto de livros, quanto de revistas, como: a série Lições de Dança, que esta em sua quinta edição (a primeira é de 1999), organizada por Roberto Pereira e Silvia Soter; a Coleção Leituras do Corpo (com três volumes publicados em 2003, 2006 e 2007), de Christine Greiner e Claudia Amorim; a Revista Húmus 1, 2 e 3 (2004 e 2007), organizada por Sigrid Nora.

Continuando este breve mapeamento é importante mencionar os livros: de Helena Katz, Um, Dois, Três a Dança é o Pensamento do Corpo (2005); Danças Populares Brasileiras (1998); Grupo Corpo Companhia de Dança (1995); O Brasil descobre a Dança; a Dança descobre o Brasil (1994). De Christine Greiner: O Corpo, pistas para estudos indiciplinares (2005); O teatro Nô e o Ocidente (2000); Butô, pensamento em evolução (1998). E ainda: A dança dos encéfalos acesos (2003), de Maíra Spanghero; Cartografia da Dança: Criadores-intérpretes brasileiros, de Fabiana Dultra Britto (2001); Dançando na Escola (2003) e Ensino de Dança no Brasil (2001) de Isabel Marques; Noverre: cartas sobre a dança (1998), de Marianna Monteiro. Cassia Navas publicou o catálogo Balé da Cidade de São Paulo, o livro Teatro do Movimento um Método para o Intérprete Criador, junto com Lenora Lobo e o livro Na Dança (todos de 2003). Ciane Fernandes, por sua vez, publicou: Pina Bausch e o Wuppertal Dança – Teatro: Repetição e Transformação (2000), sobre o mesmo tema; Fabio Cypriano escreveu Pina Bausch (2006). Inês Bogêa, em 2001, organizou: Oito ou Nove ensaios sobre o Grupo Corpo, e em 2002, O Livro sobre a Dança. Temos ainda Corpo Aberto: Cunnigham, dança e novas tecnologias (2002), de Ivani Santana. Roberto Pereira publicou vários livros, como: A Formação do Balé brasileiro: Nacionalismo e estilização, Giselle: o vôo traduzido (da lenda ao balé) (ambos de 2003), Coreografia de uma década: o Panorama RioArte de dança, juntamente com Adriana Pavlova (2001) e Eros Volúsia: a criadora do bailado nacional (2004).

Muitas dissertações e teses também se transformaram em livros, como por exemplo: O Dicionário Laban, de Lenira Rengel (2003); Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultura de dança-arte-educação, de Inaicyra Falcão (2002); Profetas em movimento: dansintersemiotização ou metáfora cênica dos Profetas do Aleijadinho, utilizando o método Laban, de Soraia Maria da Silva (2001); Nina Verchinina - Um pensamento em movimento, de Beatriz Cerbino (2001); e de Ivani Santana, A dança na Cultura (2006).

Estes são apenas alguns exemplos da produção bibliográfica que estamos vivendo na dança hoje. Surgiram muitos autores e pesquisadores, que apresentam posicionamentos políticos em relação à construção do conhecimento na área.

A partir do ano de 2006, surgiram na cidade de São Paulo as primeiras temporadas de dança, uma ação efetiva que caminha para continuidade, fator determinante para um trabalho de formação de público concreto - Bazar das Utopias, do Coletivo T1, citado acima, no extinto Estúdio Move; o Masculino na Dança, do Centro Cultural São Paulo, a unidade provisória do Sesc Avenida Paulista; e iniciando-se neste ano de 2008, o Teatro da Dança, da Secretaria Estadual de Cultura, abre espaço para temporada de dança.

Com relação à mídia, além do pouco espaço que nos é disponibilizado, como discutimos anteriormente, não temos muitos profissionais que atuem na área das mídias (televisão, rádio, jornal e Internet). Portanto, há uma dupla falta - de espaço e de especialistas. Temos um número reduzido de críticos, são eles: Helena Katz, do jornal O Estado de São Paulo; Adriana Pavlova, do jornal Folha de São Paulo; Ana Francisca Ponzio, da Revista Bravo; Roberto Pereira, do Jornal do Brasil; Silvia Soter, do Jornal O Globo; Marcelo Castilho Avellar, do Jornal O Estado de Minas; Nayse Lopes, do portal idança; Valério Césio, do site Dança, Arte & Ação. Fabiana Dultra Britto, Christine Greiner, Marcos Bragato são críticos também, mas não atuam especificamente em um único veículo de comunicação.

Na televisão, que é o grande veículo de comunicação de massa, temos a Tv SESC /SENAC, que produz o STV na Dança, como uma das únicas iniciativas; porém, não conta com profissionais especializados para trabalhar o conteúdo específico da dança.

Na Internet, o número de sites e revistas on line vem crescendo: portal do idança.net (www.idanca.net), que é um espaço para publicação de artigos, agenda de espetáculos, cursos, workshops, tanto nacionais como internacionais, e espaço para se conhecer mais sobre dança contemporânea. O site do Conexão dança (www.conexaodanca.art.br), com artigos, banco de projetos, agenda, notícias sobre dança (não apenas de dança contemporânea - neste caso, o site é mais abrangente, pois destaca mais nichos da dança que o idança) e arquivo fotográfico. O site da publicação do movimento de dança de Recife (www.dancarecife.net), que traz artigos, agenda, espaço para as leis e editais e informações sobre dança, principalmente dança contemporânea. E também o Jornal on line Dança, Arte & Ação (www.dancecom.com.br), que disponibiliza um conteúdo específico para dança, como agenda de workshops, espetáculos, cursos e artigos relacionados à área.

Com este breve cenário, podemos perceber que hoje em dia existe sim mais informação disponível e também mais acesso a ela. Já desenvolvemos conteúdos específicos e de qualidade para alimentar esses canais. Mas, afinal, se o número de espaços cresceu, se os artistas, de certa forma, conseguem se profissionalizar mais facilmente, se existem mais informações, o que faz ainda com que a dança sofra com a falta de público para seus espetáculos e trabalhos?

Neste capítulo, apresentamos, então, um breve panorama da trajetória da importância do público para os artistas, e vice-versa. Muitas questões permanecem, mas uma hipótese se desenha. Desde o princípio, ou desde a chegada do balé no Brasil, quando começamos a pensar a dança profissionalmente, o modelo didático de abordagem do público, salvo algumas exceções, continua a ser tratado de forma bastante semelhante, instituindo-se e se desenvolvendo, principalmente, nos espaços de apresentações, eventos e festivais.

Trata-se de um procedimento com pouca maleabilidade, que talvez tenha funcionado em um primeiro momento, para apresentar novas possibilidades a um público que nada conhecia de dança. Porém, ao longo do tempo, mesmo sem mostrar eficiência, essa estratégia foi mantida, criando não só uma relação de dependência, como também dificultando que esse público se relacione e compreenda a linguagem artística da dança, mantendo-o, de certa forma, distante, dando poucas ferramentas para que passe a se relacionar com a dança de forma mais ampla e livre.

Vale aqui citar a discussão que nos apresenta Giorgio Agamben sobre o estado de exceção. Ele coloca que esse estado não é um direito especial, mas a suspensão da ordem jurídica. A lei desaparece porque sua finalidade desaparece. O estado de exceção é o estar-fora e pertencer ao mesmo tempo.

A dança passa por uma crise semelhante, pois as leis que conduziam a criação e também a formação de público, no início, a cerca de 50 anos atrás, ainda continuam a se replicar, o que as torna incompatíveis com o fazer artístico de hoje, principalmente a partir da década de 80, quando se começa a repensar os modos de fazer, as produções começam a ter novas temáticas e também os limites da linguagem. Mas com a suspensão da ordem vigente, temos um novo problema, que é da inclusão de um espaço que não está nem dentro nem fora da ordem (cf. mais detalhes sobre o tema no segundo capítulo).

Talvez o próximo passo seja pensar em novas possibilidades de existir e estruturar essa relação de comunicação, de maneira mais integrada e não mais a partir de ações isoladas de um grupo ou artista. Caso contrário, corremos o risco de necessitar de mais tempo para efetivá-la.




[1] O teatro de revista tornou-se um gênero popular no Brasil a partir do final do século XIX, podendo ser caracterizado como um veículo de difusão de modos e costumes, como um retrato da sociedade da época.

A questão visual era uma grande preocupação em peças deste gênero, pois fazia-se necessário manter o "clima" alegre, descontraído, ao mesmo tempo em que se revelava, em última instância, a hipocrisia da sociedade. Os cenários criados eram fantasiados e multicoloridos. O corpo, neste contexto, era muito valorizado, fosse pelo uso de roupas exóticas, pelo desnudamento opulento ou pelas danças. O acompanhamento musical também era uma de suas características marcantes. Destacavam-se como elementos composicionais de uma revista o texto em verso, a presença da opereta, da comédia musicada. Importante ressaltar que o teatro de revista visava agradar a diferentes segmentos da sociedade. Revista se tornou a coporificação da cultura de rua (Lopes, 2000:24).

[2] Um acontecimento nos Estados Unidos no ano de 2006 pode nos ajudar a refletir um pouco mais sobre contexto: Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas do mundo, tocou incógnito durante 45 minutos numa estação de metrô de Washington, de manhã, na hora do rush, e foi completamente ignorado (...). Dias antes, lotou o Symphonie Hall de Boston, e as pessoas pagaram caro para vê-lo. A idéia foi do jornal Washington Post, para discutir arte e contexto. Nem as famosas peças de Bach, Schubert e Ponce ajudaram a chamar atenção (Jornal O Estado de São Paulo, 30 de junho de 2007).

[3] Segundo Greiner (2007:14), pensar sobre o corpo brasileiro, especificamente, é muito difícil, dada a complexidade cultural envolvida nas classificações e também não se sustenta, pois se deslocada de seu ambiente, ou seja, do corpo em movimento.

[4] No caso dos festivais, o crescimento ocorreu de forma significativa em âmbito nacional. A cidade de São Paulo não possui um festival de dança, apesar das diversas tentativas; o que temos são pequenas mostras de dança propostas pelos teatros ou espaços alternativos. Os festivais estão espalhados pelo interior do Estado.

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